quarta-feira, 22 de junho de 2011

A TELENOVELA É A ÚLTIMA TRINCHEIRA

Produzido entre 1973 e 1975, com periodicidade mensal, o jornal EX- foi um dos expoentes da chamada mídia alternativa durante a ditadura militar, reconhecido por suas reportagens aprofundadas, textos ácidos e imagens provocativas. Para dar a exata dimensão da ousadia criativa e oposicionista do EX-, a capa da primeira edição trazia Hitler, nu, tomando sol em uma praia tropical. No expediente, o alerta de que a distribuição era própria, com a expressão “garantida” entre parênteses. E o aviso “Nenhum Direito Reservado”. Já a manchete e a matéria de capa do 16º acabaram sepultando o jornal, tornando-se a última edição distribuída sob o nome EX-. “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós – a morte do jornalista Vladimir Herzog”, que revelava o assassinato de Herzog pelos militares, em outubro de 1975, e vendeu 50 mil exemplares. 

Foi para o Jornal Ex- que o dramaturgo Dias Gomes, que teve sua novela censurada em 1975, deu este depoimento:

O povo é meu parceiro. Um parceiro invisível, milhões de olhos, de ouvidos, braços, que colaboram comigo durante a feitura de uma novela. Vocês pesquisam, fazem perguntas a ele; eu tenho ele do meu lado, participando. Então, eu tenho a possibilidade de ter uma percepção um pouco diferente do que o povo é, do que o povo sente, do que o povo deseja, através de um laboratório que é a telenovela, que todo dia eu abro e vejo no ar.
Uma das coisas fascinantes da telenovela é poder fazer uma experiência diária. Você tem um laboratório aberto todas as noites, no qual você faz a experiência, e logo você tem a reação e pode aproveitar esse resultado, ainda no decorrer da própria novela. A reação é um troço novo, que se manifesta de uma maneira inteiramente nova.

Você cria determinadas personagens que passam a viver. O povo as trata como seres vivos. Eu ignoro o Ibope. Eu acho que um dado completo é a reação popular. O que não quer dizer que você tenha obrigação de agradar ao popular. Por exemplo, no início da minha segunda novela eu achei que o público de tv se chocava muito com minha formação brechtiana: não tinha distanciamento suficiente para criticar. Então se eu me propunha a fazer crítica da realidade brasileira eu não tinha platéia sensível, era uma platéia muito envolvida pela magia.

Renata Sorrah, a protagonista que morre
no início de "Assim na Terra como no Céu"
Então quando fiz Assim na Terra Como no Céu, eu invocava o tipo de vida de Ipanema. E eu necessitava de uma platéia crítica: eu ia colocar criticamente um estilo de vida. Então imaginei o seguinte: uma heroína, vinda da Zona Norte, chegava em Ipanema e, quando estava prestes a se destruir encontra um padre, por ele se apaixona e volta a ser uma criatura dessas capazes de apaixonar qualquer espectador. Ela quer se libertar da barra pesada de Ipanema, casar - e aí a matam. A platéia passou a criticar a novela, "como é que o senhor mata uma moça pura, poderia até ser minha irmã, e conserva esse banqueiro porco, que vai casar com uma mocinha?" O pessoal passou a agredir a novela sem saber que, na verdade, estava assimilando aquilo que eu queria passar. Era uma prova de que eu estava enxergando as coisas. Eu tento levar o público a uma saudável tomada de consciência.

Eu acho o povo brasileiro um povo altamente desesperançado. Que procura algo em que se agarrar, nem que seja um mito, e encontrar saída para os seus problemas. Ele reage à colocação de seus problemas de uma maneira muito calorosa, muito emocional, mas reage também de uma maneira um tanto pessimista.

Tenho procurado abordar na tv uma temática brasileira, colocando os problemas do nosso povo, da nossa realidade, o tanto quanto a censura e a profundidade da televisão me permitem. E tem sido esse o meu trabalho há 6 anos. Não me arrependo absolutamente, acho que tem sido uma experiência altamente gratificante para mim.

A proposta de Roque Santeiro era justamente esta: encontrar uma maneira de contar autenticamente brasileira. Eu achava que geralmente a disposição das cenas na telenovela era plasmada na influência do cinema americano. Os atores também, na solução de suas cenas quase sempre adotavam padrões. Os diretores do mesmo modo partiam de grandes filmes. Então eu propunha uma lavagem cerebral em mim e no texto, pra começo de conversa, e depois na direção; e que os atores também procurassem um comportamento autenticamente brasileiro.

Por exemplo, quando houvesse uma briga, que não fosse uma briga como no cinema americano. Brasileiro geralmente não briga de soco. Geralmente, quando se vai fazer uma cena de luta, a maneira que o sul-americano consagrou é a americana: o boxe.

Brasileiro briga com pontapé, rolando no chão, metendo o dedo no olho; é uma briga livre, a nossa. O nosso idioma também tem o seu som, é muito onomatopaico, principalmente no Nordeste. E não se transmite porque os atores estão muito preocupados com determinados padrões de postura, de inflexão de voz.

Tudo isso consistia em encontrar uma linguagem que não fosse calcada no cinema, que fosse alguma coisa que partisse da nossa maneira de pensar; a gente mesmo não sabia onde ia dar, mas que fosse um ponto de partida. Daí eu ter buscado os cantores populares, os mitos populares para ser o background de Roque Santeiro. É uma história popular cantada de maneira como a cantaria um cantador nordestino. É difícil de explicar; é uma coisa que a gente tem de transmitir para elaborar. E aí você sentir a reação popular de calor ou de frieza.

Usando a realidade brasileira, não posso menosprezar qualquer elemento. Agora você me pergunta: "Por que tem sempre padre na tua realidade?" Porque sempre tem padre na sua vida, em qualquer parte que você vá tem sempre. O padre é a figura da História do Brasil, desde a Primeira Missa, que foi rezada por eles. O padre numa cidade do interior é uma figura importante. São elementos de determinada realidade que eu procuro analisar.

Não procuro soluções; não compete ao teatro apresentar soluções. A função do teatro é conscientizar, mais nada. Do teatro não sai revolução, nem da televisão. O máximo que podemos pretender é levar ao povo a consciência de seus problemas. Mas quais são esses problemas, nós não vamos botar na tv. É um dado histórico.

Eu fui pra televisão por motivos praticamente econômicos. Estava impossível continuar fazendo teatro. O teatro sofreu a partir de 64 um estrangulamento cultural, econômico e político. Eu teria que optar; fazer um teatrinho dito político, abandonar a minha linha de pesquisa; ou então procurar outro meio de vida. O teatro é considerado não sei por que como uma fonte de subversão, capaz de abalar os pilares do regime. É ridículo! Ridículo que nosso teatro de elite seja considerado subversivo. Embora a minha geração de dramaturgos tenha apontado na década de 50 uma bandeira de teatro popular e político, na verdade o nosso teatro nunca chegou a ser político, quanto mais popular. Um teatro popular no palco; e na platéia a elite!

Dessa contradição palco-platéia nasceu a minha frustração e o fim total de qualquer propósito. Para que nossas propostas pudessem caminhar, seria preciso que o governo se interessasse e tivesse a cultura como uma de suas metas. Mas nós jamais tivemos um governo desse tipo.

Às vezes, os políticos nos tratam bem. Somos os homens que manipulam a opinião pública. Mas atitudes concretas absolutamente nenhuma. Se não há em relação a artes mais elitistas como teatro, literatura, cinema, não deveria haver evidentemente com uma forma de arte popular. Nunca a cultura foi meta do governo. O único homem que falou de cultura neste país era louco: Jânio Quadros.

Então, era inviável a minha profissão de dramaturgo. Daí eu ter ido para a televisão. Estava no meu campo de trabalho, encarei assim. E já que tinha de fazer televisão, decidi suar a camisa, como faço no futebol de praia. Foi essa a minha atitude inicial. Eu sou obrigado a escrever 20 laudas por dia. O trabalho é 95% braçal. Quando termino uma novela pareço um trapo, pois passei 7, 8 meses escrevendo 20 laudas por dia, impedido de ir a teatro, cinema, ver amigos - é realmente desumano. Mas não tem jeito, não depende da direção da Globo, porque telenovela é um gênero que inventamos e que só pode ser feito dessa maneira.


Nessa profissão suicida que é escrever telenovela (a censura é pior que os incidentes da produção; o autor torna-se um alvo de tensões, tanto é que Jorge Andrade escreveu uma novela só; e Lauro César Muniz, que escreveu Escalada, do meio pro fim teve que escrever com um médico na cabeceira, eu descobri a televisão com todos os preconceitos que levam para ela, numa atitude, reacionária que os intelectuais tinham e alguns ainda têm. Tenho um amigo artista plástico, que diz:

- Nunca tive um aparelho de tv, nem nunca terei, jamais deixarei entrar na minha casa.

Um ótimo sujeito, grande amigo, mas com uma posição altamente elitista. Eu sinto nos intelectuais anti-tv uma atitude ultrapassada; intelectuais com atitudes - classificados de burros. Era moda dizer que se era contra a televisão, no Brasil. Os verdadeiros intelectuais já entenderam; só persistem os subintelectuais. Ignorar a tv hoje é não poder interpretar o sistema. Há toda uma geração que está aí se desenvolvendo, essencialmente formada pela televisão. A minha atitude diante da televisão é de seriedade. A mesma com que eu fazia teatro. E descobri, de repente, que tinha nas mãos um poderoso meio de expressão e que todos os preconceitos contra ela eram idiotas.

Mas diante da tv eu tenho que me exercitar, porque descobri, que ela é a forma de expressão do nosso tempo. A televisão nivela tudo. E terrível e violenta, enquanto está sendo visto, e extremamente precária depois que passa. Como é o nosso tempo. Nós vemos ídolos serem feitos da noite ara o dia. Aquilo que nos tempos antigos era um processo de um século, hoje é feito em 2 ou 3 anos. Hoje há um tremendo esforço, para se conseguir muito pouco -se você considerar o fator tempo, a duração da mensagem (não o fator impacto, que é o maior que qualquer arte jamais pode pretender).

E a gente sempre tem medo de pronunciar a palavra arte. Essa é uma atitude de espanto diante de uma coisa nova. Ainda há uma atitude de espanto diante da televisão! Como houve espanto em relação ao cinema. Até os anos 20, ninguém chamava o cinema de arte! Nem Lumière pôde prever que o cinema seria chamado de arte. E todos esses preconceitos que existiram contra o cinema, existem hoje com a televisão.

Ela é tudo do nosso tempo. Ao mesmo tempo uma coisa poderosa, que atinge milhões em determinado momento - uma associação assim de poder e fraqueza ao mesmo tempo. Você pode assistir um combate em algum país, ver pessoas morrendo naquele mesmo momento diante de você. Você tem este poder divino de ser onipresente através da sua pequena janela, a tv. E ao mesmo tempo você é terrivelmente impotente porque não pode fazer nada por aquele pais. Esta sensação de potência e impotência é própria de nosso tempo. O mundo pode ser destruído num apertar de botão.

Quer dizer, nós adquirimos o poder dos deuses e a fraqueza imensa da criatura humana. Não poder fazer nada, diante do sistema.

A telenovela, eu acho que foi a única coisa que a televisão brasileira inventou -o resto é cópia do rádio e da televisão importada. Esta característica da telenovela, de arte que está acontecendo e que até mesmo ignora o que vai acontecer, todos os fatores, a censura, a morte de um ator, uma atriz que engravida - esta característica criou uma fórmula nova de expressão; de todas, a mais aberta: é talvez a única arte realmente aberta que existe. Na medida em que você executa recebendo a colaboração de uma platéia imensa, recebendo colaborações dos próprios artistas, realizando uma arte que não aconteceu, mas está acontecendo - porque ela acontece dia a dia, e nesse dia a dia a reação do público influi nos acontecimentos, na vida cotidiana, na solução. Porque ela entra dentro da sua casa, se intromete na sua vida, quase que violenta a sua própria vontade, te obriga a ver. É gratuita, mas também não pede licença.

A telenovela vem da Argentina, Cuba, México, que são os países que inventaram a novela radiofônica. O que existe no Brasil é uma coisa completamente diferente. A telenovela transformou-se, desligou-se quase de suas origens - não todas as telenovelas. As da Globo têm estas características. A influência do cinema americano e europeu, do romance moderno, e histórias mais complexas com um aprofundamento maior de personagens, enredos e subenredos. Então é esse produto que já foge às características lineares. É uma outra coisa, que está muito mais aparentada ao cinema e ao romance moderno que às suas origens.

Por que acontece isso? Acho que fundamentalmente pela falência do teatro como arte de massas, embora tenhamos levantado aquela bandeira do teatro popular; e o cinema transformou-se num cinema hermético, numa total incomunicação.

Acho muito cedo fazer um balanço da influência da tv sobre outros tipos de arte. Também é uma característica do nosso tempo: exigir as coisas num espaço de tempo muito pequeno. Pois já se pergunta sobre o fim das telenovelas! O que é uma coisa altamente ridícula. O teatro, que tem mais de 2 mil anos; e perguntar sobre o fim do teatro eu já acho uma coisa idiota. Então, uma coisa que começou ontem, onde ainda estamos engatinhando, procurando a linguagem, e há os idiotas que escrevem para jornal: "Há sintomas de que a novela vai terminar." Esses caras que ficam querendo analisar uma novela por padrões literários, é uma atitude inteiramente furada. Em 1º lugar eles precisam encontrar novos padrões estéticos.

A novela resolve o problema de toda a faixa de horário diário. Quando você faz um programa, você resolve o problema de um dia da semana. A novela resolve uma faixa inteira, você ganha uma sustentação do público; em termos de estratégia está certo. E a novela brasileira está sendo exportada. Irmãos Coragem foi lançada no México não como novela: foi lançada como uma série americana, diária, às 9 h da noite, numa emissora que estavam 5º lugar de audiência. E o que aconteceu? A emissora passou para o 1° lugar naquele horário. Foi uma revolução.

Causa muita estranheza aos americanos, que seus enlatados não consigam entrar no horário nobre da programação brasileira. Li unia vez um artigo que analisava o que havia no mundo todo, e o articulista constatava que no mundo todo a programação era parecida, toda importada da América. Estranhamente, no Brasil, havia às 8 h um seriado brasileiro; às 9, um programa de humorismo brasileiro, às 10, Bandeira 2 (de Dias Gomes - NR). Em todos os outros países, a não ser onde as televisões são estatais, os horários nobres exibem a programação americana.

A telenovela foi a única trincheira que nós conseguimos, a única barricada que conseguimos levantar, contra a invasão dos enfadados amerianos. Então, quando os pseudo-intelectuais atacam a telenovela, torcem pelo fim da telenovela, estão sendo profundamente antibrasileiros, antipopulares, antiintelectuais. É realmente a única trincheira. Não houvesse a telenovela, e os horários das 6 às 10 estariam importando para nós uma cultura que não é a nossa, deformando a cultura brasileira. E nós estaríamos também mandando royalties para fora. Estamos criando campo de trabalho, de experimentação brasileira.

A Globo começou a industrialização da tv brasileira, que exige dos empregados, evidentemente, o máximo - como toda indústria. Ela é uma empresa altamente capitalista. As pessoas que manuseiam os aparelhos, os tapes da Rede Globo, são técnicos feitos há pouco tempo. São jovens, feitos aqui no Brasil, que erram, que têm know-how precário e evidentemente quando há erros, devem expedir seus memorandos.Se eu tenho de escrever 20 laudas por dia, o ator também tem de decorar as 20 laudas. E o diretor tem que gravar estas 20 laudas. Então, a desumanidade no meu trabalho existe em relação ao diretor, em relação aos técnicos. Agora, isso é porque a gente inventou um troço como a telenovela, a gente inventou uma coisa que tem o seu lado fascinante, o fascinante de ser novo; mas tem o negativo de exigir um tipo de trabalho que realmente não está de acordo com o trabalho intelectual a que estamos habituados. Mas não tem saída. A saída destrói o meio.

A crise da censura? Não pode ser analisada isoladamente. Este fato atinge teatro, cinema, muitas peças foram proibidas. A crise, realmente, não é da telenovela. A crise é da cultura brasileira.

Jornal Ex-
Setembro de 1975
(Depoimento a João Antônio, Hamilton Almeida Filho e Paulo Patarra).

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