sexta-feira, 26 de agosto de 2011

ALÉM DE ASA BRANCA - RECORDE DE PÚBLICO NA PRIMEIRA SEMANA NO AR

Roque Santeiro: não há nada mais atraente na tela da televisão. É, pelo menos até agora, o melhor presente que a Globo ofereceu ao público nas comemorações de seus 20 anos. Um espetáculo novo, com a marca inventiva de Dias Gomes, que volta a destilar seu humor fino, usando a sátira com a maior esperteza. O mesmo brilho que manteve o seriado O Bem Amado durante cinco anos no ar, sem o menor sinal de cansaço. Dias Gomes parece conseguir a dose exata de criatividade para driblar o déjà vu da televisão, evitando decolar para a novidade desvairada, nonsense compreensível apenas para um pequeno grupo de iniciados.

A novela estreou com muita força, embalada na publicidade de ter sido censurada às vésperas da exibição, em 1978. Não mostrou nada que justificasse o veto. A família brasileira continua a mesma, e a segurança nacional da Nova República não está nem aí para Roque Santeiro. Prova-se, mais uma vez, que a Censura tinha alguma dificuldade em reconhecer bons espetáculos. O público, no entanto, não padece do mesmo mal: em sua primeira semana no ar, a novela está com uma média de 73,4% de audiência no Rio e 61,3%, em São Paulo. Nenhuma outra novela teve tal performance na estréia. Em seu segundo dia, Roque Santeiro arrebanhou um público de 3 milhões 343 mil pessoas no Rio com um índice de 83%, cada vez mais raro, mesmo na Globo.

Por que tanto sucesso? Diz o público que a história quebra a rotina do horário, mostrando o Brasil brasileiro, tema bissexto na nossa televisão. A cidadezinha de Asa Branca, o coreto na praça e seus personagens meio caipiras acabam sendo mais exóticos do que o pseudo charme cosmopolita, pasteurizado em comportamentos de clichê. Roque Santeiro inova exatamente por esse caminho e por não ter caído na armadilha do novelão que costuma dar certo no horário. Nada de choro e soluço, muita gargalhada arrancada por um elenco escolhido com acerto. E um ritmo frenético da narrativa, sem as habituais esticadas de cena que deixam o espectador com a clara sensação de que está sendo engabelado.

Cenas impagáveis já foram ao ar. As "meninas" da boate Sexus exibindo os traseiros para a dupla moralista D. Pombinha (Heloísa Mafalda) e Mocinha (Lucinha Lins) foi ótima. Assim como os arroubos amorosos entre Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e Porcina (Regina Duarte) que chegam ao clímax nas lambidas de mão e latidos: engraçadíssimos. Aliás, esses papéis parecem ter sido feitos sob medida para os dois. Lima Duarte interpreta um coronel do interior com toda exuberância que o poder regional lhe dá. E o faz de uma forma leve, sem jamais comprometer a linha de humor do texto. Basta lembrar a cena em que perde a peruca no quebra-quebra na Sexus. Levanta devagar detrás da mesa, com o jeito do Moita.

Regina Duarte é uma boa surpresa no papel da mulher escrachada, com o deboche que a fôrma de "namoradinha do Brasil" jamais deixou aparecer, atrofiando sua veia cômica. Em Porcina, está à flor da pele. Muito bom, também, o desempenho de Ary Fontoura, encarnando o prefeito S. Flô.

Mostrou seu talento ao ler o discurso de inauguração da estátua de Roque Santeiro só para prender o misterioso professor Astromar (Ruy Resende) em sua casa até meia-noite, hora em que a candice da cidade diz acontecer sua transformação em lobisomem. Enquanto espreitava o relógio, S. Flô solta um "iiih" que encheu a cena de graça. E Paulo Gracindo, com o Padre Hipólito, está perfeito.

Paulo Ubiratan
Tudo corre bem em Roque Santeiro, por enquanto. A direção de Paulo Ubiratan aproximou a imagem do cinema, usando o close só nos momentos indispensáveis. De resto, muita ação. Um bom exemplo desse tipo ágil de direção foi a inauguração da tal estátua, com a tela repleta de detalhes. Nisso Paulo Ubiratan conta com a cumplicidade de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, encarregado da continuação da história. Os dois evitam, no texto, passagens que conduzam à câmera fechada, imagem quase inevitável em diálogos compridos entre personagens. No script da novela as situações, mais do que o discurso, dão as dicas da história.

O tema da novela é outra novidade. A discussão do mito costuma aparecer com freqüência em teses acadêmicas mas nunca chega ao grande público em linguagem simplificada. E omito está sempre presente, uma passada de olho na História.

Asa Branca vive de Roque Santeiro, a exploração desse santo laico é a espinha da cidade. Assim como outros mitos sustentam governos e civilizações. Roque (José Wilker) entra em cena no capítulo 27, mais vivo do que nunca. A partir desse ponto, a história passa a questionar a ética do poder instalado em Asa Branca. O que fazer? Conviver com a mentira ou encarar a verdade, mesmo que ela signifique a falência, a derrocada dos poderosos e da própria cidade de Asa Branca?

Em 1978 ruía o "milagre econômico", um dos mitos mais cultivados pelo regime militar. A grande ressaca nacional estava logo ali, bem à vista. Entende-se que não era o melhor negócio, para o governo, abrir terreno para esse tipo de discussão. Mais do que o mito, a história de Dias Gomes cutuca a falsidade, o embuste.

Míriam Lage
Jornal do Brasil
7/7/1985

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