terça-feira, 30 de agosto de 2011

ALÉM DE ASA BRANCA - UMA CENTELHA DE DEAFIO E IRONIA EM CADA PERSONAGEM

UMA CENTELHA DE DEAFIO E IRONIA EM CADA PERSONAGEM

Em vez de "se sentar para planejar" os personagens que vai interpretar, José Wilker - como ele revela - prefere ir encontrando cada tipo no seu convívio com as outras figuras da peça ou da novela de que participa. Com essa técnica, muitos traços de sua personalidade acabam por se imprimir no personagem - entre eles, uma centelha de ironia e de desafio ao convencional e uma tendência aos extremos, a não ter limites. "Escolho esses papéis porque escolho isso na vida", diz. São essas as características que ele está emprestando ao seu "Roque Santeiro", cujo reaparecimento agita Asa Branca.

Para José Wilker, Roque Santeiro é bem diferente dos papéis leves, sem muitos conflitos, que vinha fazendo na tele visão - apenas no especial São Bernardo, como ele lembra, teve a oportunidade de viver um personagem mais pro fundo. Por enquanto, Wilker ainda está na fase do "farejar, ouvir e pegar", com relação ao seu Roque, porque prefere h sentindo-o aos poucos. De uma coisa, porém, já tem certeza - de que se trata de um tipo irônico. E explica:

- Roque ficou fora 17 anos e o olho que vem de longe vê mais criticamente o que se passa. Ele vai embora e o que encontra, ao voltar? A situação é tão absurda que só tem duas escolhas: se matar ou rir. Acho que a gente do interior do Brasil, de maneira geral, é dotada dessa ironia e desse senso de humor especiais. Sc assim conseguem sobreviver. Apesar da fome, estão aí, vivendo, com uma más. cara que foram adquirindo, uma couraça muito forte.

Roque Santeiro enriquece uma galeria já muito numerosa de tipos criados por Wilker. Agora mesmo, ele está fazendo outro personagem forte, o sr. Ponza da peça "Assim é, se lhe parece", de Luigi Pirandello e, recentemente, participou das filmagens de "O homem da capa preta", como Tenório Cavalcanti. No cinema, aliás - como ele comenta - foi que fez seus papéis mais controvertidos - um José Wilker invariavelmente satírico, enlouquecido, irônico (como em "Dona Flor", "Bye, bye Brasil", "Chica da Silva" e outros). Diz ele:

- Não acredito que tenha nada, diretamente, de qualquer um desses personagens. Nada do Tenório, nada do Vadinho de "Dona Flor". Mas existe sempre, entre todos eles e eu, um traço comum, pelo menos - sou uma pessoa de extremos, como eles, e não consigo ter meios-termos. O sr. Ponza e Roque Santeiro estão também nos extremos, nos limites. Sou sempre impulsivo, mais apaixonado e emocional que qualquer outra coisa. No fundo, o que me leva é o impulso, o instinto. Não guardo rancor mas, quando agredido, minha resposta é extremamente violenta. No instante seguinte, esqueço tudo.

Uma característica de Wilker é que ele - como está acontecendo agora, no caso de Roque e do sr. Ponza - consegue, sem maiores problemas, fazer mais de um personagem ao mesmo tempo, mesmo que sejam complexos. Certa vez, quando gravava a novela "Anjo mau", filmava como Vadinho, dublava "Chica da Silva" e atuava no palco com "Os filhos de Kennedy". Ele revela o segredo de sua multiplicidade:

- Tenho uma técnica. especial. Claro que passo coisas minhas para meus personagens e levo algumas coisas deles para casa, mas não os levo inteiros. Sempre gostei de usar os personagens para me entender um pouco mais, brigar com meus limites. Mas, fora isso, brinco muito, trabalhando, para relaxar uni pouco. Gravar está sendo muito divertido. No teatro, também, até minutos antes de entrar em cena estou brincando. Levo uma televisão para ver um jogo de futebol, fico ouvindo música no radinho de pilha.

O ator é disciplinado, o homem não. Inquieto, Wilker diz que não quer tranqüilidade. Vive ao sabor de seus novos pensamentos e, além disso, acha que não pode confiar na própria cabeça, porque ela não segue o padrão: "Tem uma coisa incontida dentro de mim que sempre subverte tudo". Mas ele esclarece:

- Quando digo que sou inquieto, não quer dizer que eu seja insatisfeito. Sou capaz de ficar parado no mesmo lugar durante cinco horas, ouvindo ópera. A inquietação a que me refiro está na minha cabeça, é mais metafísica, mais espiritual. Também não estou descontente com o que está acontecendo comigo. E meu descontentamento, na maioria das vezes, se dá do geral para o particular. Não estou satisfeito, por exemplo, com o meu País. Então, reajo com o meu trabalho. Esse meu trabalho é pequeno demais para influenciar o destino do País mas, somado a mil e um outros, pode chegar a alguma coisa.

Hoje, Wilker é casado com Mônica Torres, com quem tem uma filha, Isabel, de cinco meses. E pai, também, de Mariana (de seu casamento com Renée de Vielmond), que está com 5 anos. Ser pai, para Wilker, "é a reinvenção da gente":

- A gente renasce. Acho que, com os filhos, a gente percebe o que o dia-a-dia nos leva a esquecer: o paradoxo da extrema simplicidade e da complexidade do estar vivo. A gente aprende muito mais com os filhos do que eles com a gente.

Ele está muito contente com o elenco "coerente e correto" de "Roque Santeiro". Já atuara ao lado de Lima Duarte, Paulo Gracindo, Ary Fontoura, Regina Duarte. Pela primeira vez, atua com Cássia Kiss. Diz que encontrar os velhos conhecidos, ou conhecer novos colegas, está sendo "uma surpresa feliz". Que procura retribuir, dando alguma coisa de si em seus relacionamentos com os outros participantes da novela.

Por
Mara Bernardes
Jornal O Globo
28/7/1985

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