terça-feira, 6 de setembro de 2011

ALÉM DE ASA BRANCA - ROQUE SANTEIRO E A CENSURA

Apesar de ser o caso mais conhecido, 
outras novelas também já foram “amputadas” pela censura.

Com a reprise de Roque Santeiro no canal Viva se aproximando, a curiosidade sobre a primeira versão da novela, produzida em 1975 e, censurada pelo governo militar momentos antes de sua estréia, também volta com força total. O veto foi estabelecido depois que a Delegacia de Ordem política e social (Dops) descobriu que Dias Gomes estava adaptando um texto teatral de sua autoria, escrito em 1963 “O Berço do Herói”, proibido pela censura federal. Na ocasião já havia sido gravados 36 capítulos da novela, então protagonizada por Betty Faria, Lima Duarte e Francisco Cuoco. No dia da proibição, o locutor Cid Moreira leu no Jornal Nacional, um editorial assinado pelo então presidente da Rede Globo, o jornalista Roberto Marinho, anunciando o veto. Surgiram manifestos de artistas e debates no Parlamento. Até mesmo uma portaria do Ministério da Justiça veio à tona, avaliando que a telenovela poderia ser “de um lado valioso instrumento de educação, e de outro, meio eficaz de deturpação de valores éticos da sociedade”, requerendo, portanto uma regulamentação específica. A argumentação era que a legislação da censura vigente era antiga, de 1946, anterior à televisão e à telenovela, necessitando por isso de uma atualização. Exigia-se assim censura prévia do texto integral e gravação de todos os capítulos, estabelecendo-se proibições relativas ao uso de drogas, exploração do sexo, pregando-se ainda o “respeito às tradições e valores da nossa civilização”.

Mesmo assim, diversos foram os temas delicados abordados por autores e diretores. Em recente entrevista ao jornal O Globo, o escritor Alcides Nogueira, responsável pela adaptação de O Astro, exibida originalmente em 1978, disse sobre Janete Clair, autora da primeira versão: “Estreei a minha primeira peça no mesmo ano, e logo recebi um telegrama de censura para todo o território nacional. Assistia à novela de Janete e ficava espantado em ver como ela conseguia contar essa história debaixo de uma censura tão rigorosa. Ela era esperta e conseguia driblar. Colocou o cotidiano brasileiro na tela através de uma figura que simboliza a maracutaia.”. Inteligentemente, Janete transportou para um conglomerado de supermercados a crítica política que queria fazer. 

Seu marido na época, o também autor Dias Gomes, conseguiu em sua primeira novela, Verão Vermelho (1970), a proeza de denunciar o preconceito racial e social, tratando de questões polêmicas como a reforma agrária e o divórcio, ainda não legalizado na época. Ainda em Bandeira 2 (1971) e O Bem Amado (1973), baseada na peça teatral Odorico, o Bem Amado e os mistérios do amor e da morte, vemos circular em suas histórias temáticas e personagens como: o preconceito de cor, coronelismo, dinheiro como força corruptora, celibato de padres, hipocrisia da Zona Sul carioca, retirantes e marginais do jogo do bicho e contrabando.

Cabe ressaltar que o realismo concebido pelos autores neste período, visa responder a uma questão central: como retratar, criticar e discutir a realidade brasileira? A resposta marcou várias das sinopses apresentadas pela TV Globo, como a de Jorge Andrade para a novela O Grito, em 1975: “A vida de São Paulo, nas suas vinte e quatro horas de correria, poluição, gente se esbarrando e nem sentindo, solidão, superpopulação e potencialidades. A novela é o retrato desta realidade. O Grito é a metrópole. Os problemas mais urgentes nas grandes cidades estão particularizados em São Paulo”.

Mas engana-se quem acha que tudo foram flores ou que o caso de Roque Santeiro é um caso isolado. A Globo, sempre apontada como cúmplice e protegida do regime militar, teve várias novelas “amputadas” pela censura, durante e depois da ditadura. Alguns casos merecem atenção, seja pela seriedade ou pela curiosidade da situação.

A própria Janete Clair, chamada de esperta por Alcides, não teve a mesma sorte sempre. Em O Homem que deve morrer (1971), Janete Clair pretendia criar para o personagem principal uma trajetória de vida semelhante à de Jesus Cristo, mas o argumento foi considerado impróprio pela Censura Federal, e os scripts dos dez primeiros capítulos foram vetados. Em Fogo sobre Terra (1974), novela que já havia sido vetada um ano antes (criando a novela Semideus como tapa-buraco), continuou sofrendo cortes durante a exibição. A censura exigiu mudanças no enredo por causa dos capítulos em que Pedro Azulão (Juca de Oliveira) conclamava o povo a pegar em armas para defender a cidade de Divinéia. Numa entrevista, a autora queixava-se da censura: “É preciso dizer que não tem sido fácil escrever Fogo sobre Terra. Por vezes o telespectador deve ter achado um capítulo sem nexo, truncado, e deve ter imaginado que eu enlouqueci...”.

Em Duas Vidas (1976) novamente volta a travar uma luta com a censura por causa de um romance entre uma mulher mais velha e um jovem e principalmente pelo pano de fundo da história: a desapropriação de uma rua no bairro do Catete, no Rio, para a construção de uma linha do metrô. Era uma obra do governo federal, e não podia ser criticada na televisão. A autora chegou a escrever uma carta à Divisão de Censura e Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal onde dizia: “Quem lhe escreve é uma escritora perplexa e desorientada (...) Não apenas pela drástica mutilação da obra que venho realizando, como também diante do incompreensível critério que orienta a ação dos censores...”. Até em sua última novela das oito, Sétimo Sentido (1982), sofreu desde seu primeiro capítulo diversos cortes impostos pela censura.

Glória Pires e Raul Cortez
em "Partido Alto", de 1984
O mesmo Dias Gomes, autor de Roque Santeiro, teve sério problemas também em Bandeira 2, exatamente por ter como protagonista um bicheiro. A censura exigiu que o autor “matasse” Tucão (Paulo Gracindo), personagem que tinha grande aceitação do público. Assim como em Partido Alto (1984), novela de Aguinaldo Silva e Glória Perez, onde a censura – que já havia proibido a menção às atividades ilegais do bicheiro Célio Cruz (Raul Cortez) e imposto uma mudança de rumo no enredo – interferiu no último capítulo, que foi modificado: o bicheiro e seu cúmplice Reginaldo (Milton Gonçalves) não fogem para Europa. No texto reescrito, Célio insinua que a história não está encerrada e indaga ao policial que o prende: “Ainda é possível dialogar?”.

Nas novelas O Casarão (1976) e Transas e Caretas (1984), ambas  de Lauro Cesar Muniz, o problema foi a “infidelidade feminina”. Na primeira, uma das tramas paralelas era o triangulo amoroso formado por Lina (Renata Sorrah), Estevão (Armando Bogus) e Jarbas (Paulo José) e na segunda Aracy Balabanian interpretava uma mulher casada e com filhos que se apaixona por outro homem. Ambas as histórias foram prejudicadas pelas imposições da censura, que não permitia o adultério feminino em novelas.

Rubens de Falco e Lucélia Santos
em "Escrava Isaura"
Até a adaptação de uma obra romântica escrita no século XIX sofreu cortes. Em Escrava Isaura (1976), Gilberto Braga foi proibido de usar a palavra “escravo” no texto. A solução encontrada pelo autor foi substituí-la pelo termo “peça”. Nos capítulos finais da minissérie Anos Rebeldes (1992), Gilberto reproduz esse encontro através do personagem Galeno (Pedro Cardoso). Outro fato curioso aconteceu em Escalada (1975), onde apesar das referências à construção de Brasília, onde foram gravados os últimos capítulos, o nome do presidente Juscelino Kubitschek não era mencionado por imposição dos censores.

Mesmo com o fim da ditadura militar em 1985, casos famosos de veto são constatados em algumas novelas, como por exemplo, Mandala (1987), de Cassiano Gabus Mendes, que teve vários problemas com a Censura Federal, chegando a vetar a sinopse sob a alegação de que novela tratava de temas impróprios para o horário das 20h30, como incesto, uso de drogas e bissexualidade. Só foi liberada depois que a Rede Globo comprometeu-se a fazer modificações no original. Posteriormente, a censura voltou a atuar, proibindo um beijo entre Jocasta (Vera Fischer) e Édipo (Felipe Camargo), considerando a cena agressiva aos telespectadores. Porém, como os personagens desconheciam sua condição de mãe e filho, a cena foi finalmente liberada. A novela tinha de início forte conotação política, que também teve de ser atenuada. 

Até Vale Tudo (1988), que tratou de forma direta e crua problemas sociais muito sérios, enfrentou problemas. Vários diálogos entre as personagens Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin) tiveram que ser reescritos depois que foi vetada a cena em que as duas contavam a uma amiga sobre os preconceitos de que eram vítimas por causa de seu relacionamento. Inclusive, o mais recente exemplo de censura discutido amplamente, é sobre a exibição do tão esperado primeiro beijo gay em telenovelas. Em 2005, na novela América de Glória Perez, criou-se uma grande expectativa em torno do último capítulo, em que aconteceria um beijo homossexual masculino entre os personagens Junior (Bruno Gagliasso) e Zeca (Eron Cordeiro). O capítulo bateu recorde de audiência, mas para frustração de muitos, a cena, que foi escrita e gravada, não foi apresentada.

Deixei para o fim desse o texto o caso, que em minha opinião, foi a maior rasteira passada pela Censura Federal na poderosa Rede Globo. Um ano e três meses após proibir Roque Santeiro como subversiva, a censura fez o mesmo com Despedida de Casado, novela de Walter George Durst, por considerá-la também “atentatória aos bons costumes”. Praticamente todo o elenco foi aproveitado na nova produção do horário, Nina, também escrita por Walter. O depoimento de Walter Clark, diretor geral da TV Globo na época, sobre esse período é interessante: “Nos meus últimos três anos de Globo, minha vida foi de presidente de TV norte-americana, especialmente pelos contatos com o governo, que ameaçava o tempo todo com a censura. Tivemos problemas com a censura em duas novelas: “Despedida de Casado” e “Roque Santeiro” que, gravadas parcialmente, com chamadas no ar, não foram levadas ao público, com grande prejuízo. “Despedida de Casado”, do Durst, tinha até acessória técnica do psicanalista Gaiarsa. Mas nada disso comoveu a censura que via nela pura dissolução dos costumes”.

Mesmo no interior desse espaço ocupado pela telenovela, delimitado pelo interesse do Estado e da indústria cultural, vemos que as tensões e os conflitos se manifestaram. A face repressiva da censura colide até com a proposta mercadológica da TV Globo, que enfrentou o mesmo gosto amargo das intimidações, das impossibilidades que todo mundo sentiu: imprensa, rádio, televisão, as artes, a universidade, a cultura.

Por 
Rafael Delfino Tupinambá

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